A marca da escravidão no racismo brasileiro

Por Adelson Vidal Alves

Das 12 milhões de almas que atravessaram o Atlântico em navios tumbeiros (assim chamados porque se assemelhavam a verdadeiras tumbas), 4,9 milhões tiveram como destino o Brasil. Na terrível travessia, a incerteza do destino, muitos dos negros e negras temiam o canibalismo dos novos povos que encontrariam. Sem alimentação decente, em lugares insalubres, contraiam doenças, eram esmagados pela lotação. Mortos, tinham seus corpos atirados ao mar.


Chegando na América Portuguesa, longe de seu povo, dos seus costumes e da sua cultura, conheceriam o trabalho compulsório, depois de serem negociados por pessoas de cor de pele semelhante. No Brasil, a escravidão não se fundou prioritariamente em razões raciais, mas na dinâmica da economia mercantil colonial. Nada em nosso estatuto jurídico impedia um negro de ter escravos, mesmo escravos tinham escravos. A escravidão estava inscrita na nossa cultura. O estatuto da posse, que convertia pessoas em coisas, dava o tom das relações de trabalho predominantes na colônia e no período imperial.

Longe de ser amena, a escravidão no Brasil, como em qualquer lugar, foi tirana, violenta, cruel e perversa. Famílias eram separadas (ainda que estudos como o de Manolo Florentino mostrem realidades até então desconhecidas sobre a questão das famílias de escravos), os cativos amontoados em condições desumanas, proibidos de viver a sua religião. O mundo do trabalho neste período era bem plural, há diferenças de escravos de eito e outros escravos. Nas fazendas a vida era dura, mesmo crianças, os “moleques”, com seus corpinhos frágeis, desde cedo eram expostas ao trabalho pesado, enquanto serviam de brinquedinho aos filhos dos brancos. Escravas eram obrigadas a abandonar seus filhos para atender a senhora da Casa Grande, enquanto seus queridos meninos e meninas eram doados ou criados por outras pessoas. Mulheres gravidas sofriam castigos físicos, e até mesmo máscaras faciais eram usadas para frear a possibilidade do suicídio em situações onde homens e mulheres comiam areia até morrer. Se matar era um ato de resistência dos cativos.

Depois de mais de três séculos, a escravidão no Brasil foi extinta, assinada pela princesa Isabel, então regente no país. O 13 de maio de 1888 foi celebrado, mas se tratava de um ato incompleto, sem reparações adequadas. Negros foram enquadrados na Lei da vadiagem na República que chegava, a capoeira foi proibida. O novo mundo abolicionista guardava marcas do mundo escravocrata, e se estende até os dias de hoje.

No dia 18 de Maio, o menino João Pedro foi morto em São Gonçalo, o local onde estava recebeu 70 disparos. Os autores do assassinato vestiam a farda do Estado, e configura apenas mais um caso onde o poder estabelecido age com violência contra a população negra, a exemplo das caçadas aos ditos “escravos fujões” no período escravocrata. Favelados negros são o alvo preferencial da Polícia. No início deste mês, Miguel Otavio, de 5 anos, morreu depois de uma queda do nono andar, enquanto estava sob cuidado da patroa de sua mãe. A exemplo de João Pedro, Miguel era negro. O descuido da patroa aconteceria caso a criança que estivesse sob sua guarda fosse um branco filho de uma amiga da classe média de Recife? Certamente não. As amas de leite da escravidão tem sua versão moderna nas domesticas de hoje, que são obrigadas a dormir no trabalho e deixar sua prole sozinha em casa. A maioria delas, negra, cuida dos filhos das patroas brancas enquanto estas vivem suas vidas, pois podem comprar o tempo livre.


A escravidão foi abolida no país, mas a cultura que massacra negros, sustenta o racismo e suas terríveis consequências ainda está viva. Os governos e a sociedade precisam agir, do contrário, essa mancha vergonhosa seguirá nos perseguindo.

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