Um novo mundo que surge depois do COVID-19

01/04/2020
Por Adelson Vidal Alves

O filme “O Poço”, disponível na Netflix, narra um sistema prisional que funciona em degraus. Os prisioneiros estão distribuídos em centenas de níveis distintos, e uma mesa de comida é colocada no primeiro nível do poço, e cada setor tem um tempo para poder comer enquanto o que sobra desce para níveis inferiores. Os que estão na parte de cima devoram o que podem sem se preocupar com os de baixo, que quanto mais inferiores estiverem, menor a chance de comerem algo. Esta metáfora do comportamento humano mostra como somos naturalmente egoístas em tempos de escassez, quando nem mesmo apelos humanitários sensibilizam os corações.

Em tempos de pandemia, “O Poço” aparece como uma realidade. Quando a Cloroquina – , medicamento utilizado em tratamento da malária e doenças autoimunes-, surgiu como possível tratamento ao COVID-19, as pessoas logo se apressaram em esvaziar as farmácias e estocar a droga. Os pacientes de uso contínuo do remédio ficaram sem o medicamento. Se fizeram isso com um remédio que sequer tem comprovação no uso contra o vírus que nos assola, o que acontecerá quando faltar comida? Devemos destacar que encher carrinhos de remédios é privilégio em um país com tanta pobreza. O pessoal do nível de cima parece não querer deixar que chegue comida no ultimo nível do poço.

Em entrevista histórica no Roda Viva, o biólogo Atila lamarino cravou: “O mundo que tínhamos acabou”. Ele está coberto de razão. Não sabemos quando a pandemia vai passar, quando teremos alta do isolamento social. Liberados totalmente para voltar à normalidade, somente com uma vacina, e mesmo assim, depois de termos a segurança do funcionamento desta. Quem aqui vai encarar um maracanã lotado nos próximos meses? Quem aqui vai frequentar tranquilamente cinemas, restaurantes, o Rock In Rio? Quem aqui sairá abraçando, beijando, tocando tudo e todos que vê por aí? No nosso inconsciente estará a presença sistematizada do medo, do instinto por isolamento de segurança, de busca por proteção.

Na modernidade liquida, vivemos um mundo cercado de muros, de medos diante da instabilidade na vida social e nos nossos relacionamentos afetivos. Nada mais é seguro e sólido, tudo se move, se descarta. Um grande amor não precisa passar por aglomerações de uma boate ou barzinho, para isso existe o Tinder. Sozinho diante do seu celular, você pode escolher no cardápio o alimento afetivo ideal para seu ego. Instrumentos como este que representam a liquidez societal moderna serão abundantemente utilizados quando enfim formos libertados da quarentena.

Após o COVID-19, o dia a dia será para pensar no meu emprego, na minha família, no meu salário, nos meus filhos. A utopia de uma grande solidariedade planetária parece ter morrido. Sairemos mais frios, psicologicamente paranoicos e individualistas. Teremos que repensar nosso sistema econômico, nossas afetividades, o entretenimento, as relações sociais, as instituições como um todo. Menos gente irá ao cinema, no lugar dele, os aplicativos de filmes. Os restaurantes ficarão vazios, no lugar deles, o delivery. Escolas cheias de alunos em salas apertadas serão um convite ao desespero, reduzir aglomerações será uma tendência. No mundo do trabalho tudo vai mudar. Se lanterninhas de cinema e garçons podem perder o emprego, motoboys e profissionais de informática terão mais espaços. Menos gente circulando e mais máquinas trabalhando por nós. O vírus antecipa um futuro que já estava no nosso radar.

O novo mundo que surge, mais fragmentando, frio e egoísta, é a vitória das ideologias reacionárias, como o multiculturalismo, que pretende erguer grades raciais, étnicas e sexuais, ou como o nacionalismo xenófobo, que ainda hoje se move pelo paradigma da raça superior. A globalização humanitária tão sonhada por alguns foi derrotada, o novo mundo será de egoísmo e de frieza relacional.